domingo, 30 de setembro de 2007

"Só se vê bem com o coração"

O que pode uma pessoa se não ser ela mesma?
Ser ela mesma, com suas características impingidas pela vida...
Ser ela mesma como a vida a concebeu – maravilhosamente viva, e bela...
Ser aquilo que ela é, e somente aquilo, sem interferências externas?

Infelizmente ela não pode ser o que era ao nascer, um Ser,
porque aprendeu que tem que carregar nas costas
o peso das opressões que sofreu na vida,
as necessidades externas impostas pelos outros.
Correr da própria sombra sem nunca encontrar a própria luz.


Malditos olhos que oprimem a humanidade!
O que vemos nas pessoas, se prestarmos atenção,
é apenas aquilo que queremos ver.
Uma mulher, por exemplo, será apenas aquilo que nós,
homens heterossexuais, com nossos Egos vorazes, desejamos nela.
Será bonita, se quisermos que ela seja bonita.
Será querida, se quisermos que ela seja querida.
Será boa, se quisermos que ela seja boa.
Pura ilusão. E quanto maior a ilusão, maior o perigo.
Isso se chama Ego.

Ego que se orgulha, deseja, se envaidece,
teme, tem ciúme, se frustra, julga, perde a fé.
Ela pode ser feia por sob a pele de cordeiro,
pode ser um Ego esquálido, feio e pobre de espírito,
por quem o melhor a fazer é se afastar
e dar-lhe o tempo de se desmaterializar longe de você.
Cabe a cada um se encontrar em nível profundo,
ter acesso à profundeza bela da essência permanente.
Mas se teu Ego for ainda sobreposto ao teu Ser,
sofrerás por quem não vale a pena.

Muitas delas se esforçam para serem vistas como belas,
Até são próximas do padrão de beleza que os Egos buscam,
mas compulsivamente buscam mais, pois são vazias.
E quando acham um Ego que as tenha, os usam,
abusam e se deixam abusar.
E chamam isso de amor.

Isso acontece quando aceitamos o fato de que o que vemos é a realidade.
Porém, tirados os óculos do observador, do idealista, do Ego que vê,
Resta o observado, o desejado, e o observador e o Ego
se tornam um patético resquício de inconsciência
que logo se extingue na vastidão da vida e na voracidade do tempo.
Percebemos que passamos a vida dormindo.

O orgulho que se alegra com o novo,
Que se regojiza em substituir o belo que foi consumido, de modo calculista,
Que faz uso de um novo para satisfazer seu vazio e incompletude,
Que caminha pelos mesmos trilhos de inconsciência e vaidade,
orgulhoso, no novo velho carro de luxo que nunca foi seu,
O Ego que caminha de mãos dadas a um novo Ego,
Que deseja e aspira, idealiza e consome, imagina e compara,
Que se interessa pelo que o outro pode lhe dar,
pelo que o outro pode ser aos olhos do grupo patético ao qual acha pertencer,
Que olha ao redor para perceber quem os vê passar,
Que é eternamente vaidoso e pobre de espírito, recalcado e crítico,
Que pouco se importa com o que fazem desde que façam algo adequado
e com o devido status imaginado para si perante os outros Egos,
É apenas mais uma droga no repertório viciado
de um Ego que nunca dará espaço ao Ser subjacente,
que confere o verdadeiro significado à existência,
mas que se afoga diante do espelho idolatrado da forma efêmera.
É a semente que morre no solo infértil da vaidade.

O Ser não julga nem condena, não idealiza nem destrói,
não melindra nem usa, nem busca ideais obsessivamente fora do presente.
Apenas alegra-se em amar verdadeiramente,
num estado permanente de sinceridade franqueza,
sem ansiedade nem vício, muito além do Ego.

domingo, 23 de setembro de 2007

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que idéia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do mundo?
Não sei.
Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar.

É correr as cortinas da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das coisas?
Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.

Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica tem aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
"Constituição íntima das coisas"...
"Sentido íntimo do universo"...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins quando o começo da manhã está raiando,
e pelos lados das árvores um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentando, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água da fonte.
O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, aqui estou!
(Isto é talvez ridículo ao ouvidos de quem,
por não saber o que é olhar para as coisas,
não compreende que fala delas
com o modo de falar que reparar para elas ensina)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e o sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si-próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda hora.

Fonte: Fernando Pessoa- Obra Poética.